“Não há nada tão doloroso como uma história não vivida.”. Contamos-lhe tudo o que tem que saber se viver uma perda gestacional, experiência esta tão dolorosa quanto importante.
Quando engravidamos e nos dizem que a nossa gravidez não é evolutiva, há algo profundamente doloroso em nós… Aquela sementinha, aquele positivo, a ausência da menstruação, tensão mamária e moinhas pélvicas, já tinham uma história. E não há nada mais solitário que uma perda gestacional… Por melhor acompanhadas que estejamos, por mais “lamentos” que ouçamos, não há nada nem ninguém que cure essa ausência que fica e ficará para sempre… E fará parte da nossa história, que vai além da obstétrica.
Definição e epidemologia
A perda gestacional é geralmente definida como uma gravidez intrauterina inviável até às 20 semanas de gestação (22 semanas segundo a Organização Mundial de Saúde – OMS, ou quando o produto de conceção tem um peso inferior a 500g) que ocorre de forma espontânea.
É no primeiro trimestre (12 semanas + 6 dias) que a perda gestacional (precoce) ocorre com mais frequência (em 10% de todas as gestações clinicamente reconhecidas), com maior prevalência entre as 6 e as 8 semanas de gravidez (cerca de 80% dos abortos precoces). Quando a perda gestacional se dá no segundo trimestre de gravidez (entre as 13 semanas + 0 dias e antes de 20 semanas + 0 dias) considera-se estar na presença de uma perda gestacional tardia.
Este facto explica porque em alguns centros de acompanhamento a grávidas (hospitais, centros de saúde ou clínicas) o preenchimento do Boletim de Saúde da Grávida só é feito a partir da ecografia do primeiro trimestre (entre as 11 e as 13 semanas de gravidez). Acredite, os profissionais de saúde também ficaram extremamente felizes com o vosso Positivo, mas optam por ser cautelosos quanto à gestão das expectativas do casal.
Tal como havíamos escrito no artigo anterior “O início da vida” a fase de maior sensibilidade ambiental do embrião é entre o 17.º e o 56.º dia de gestação. Observe na tabela 1 (dias e semanas de gestação de acordo com a data da última menstruação em mulheres com ciclos regulares), e verá que estes dias ocorrem entre a 2.ª semana de gestação e a 8.ª semana, o que significa que quando surgem os primeiros sintomas que a fazem suspeitar de que está grávida (por exemplo: pelas 5 semanas), o embrião já se está a desenvolver num determinado ambiente. Por esse motivo incentivamos TANTO a preparação de uma gravidez, para que o “ambiente” seja o mais favorável possível ao desenvolvimento saudável do seu bebé.
Causas de uma perda gestacional
As causas de aborto precoce podem estar relacionadas com anomalias cromossómicas (cerca 50% de todos os casos de perda precoce da gravidez), desequilíbrios hormonais (insuficiência do corpo lúteo, hipotiroidismo, diabetes mellitus, insulinodependente com glicémia elevada no 1º trimestre), fatores imunológicos, fatores genéticos, trombofilias hereditárias e, mais raramente, de causa infeciosa.
A ocorrência de aborto tardio está relacionada com a idade materna avançada (figura 1), paridade elevada (várias gravidezes anteriores), incompetência cervico-ístmica (o colo cervical dilata precocemente) ou outras anomalias do aparelho reprodutor feminino. A nutrição inadequada, o consumo de álcool, de tabaco e de cafeína (mais de 2 cafés ou similares), a obesidade e o stress também podem estar na base desta perda.
Nas unidades de saúde é relativamente recorrente ser diagnosticado na mulher a ocorrência de um aborto precoce, sendo ou parecendo ser desvalorizado pelo profissional de saúde, um acontecimento com uma dimensão tão catastrófica como a perda de uma vida, cuja história não será vivida.
Deixe-me fazer um parêntese, lamento imenso se sentiu essa dupla dor, ao sentir-se abandonada aquando da perda de um filho, e peço desculpa se alguma vez a fiz sentir assim.
Como posso suspeitar que está a acontecer comigo?
Pode começar por perda ou redução dos sintomas de gravidez (náuseas, vómitos, sensibilidade mamária) antes das 12 semanas, apesar de a perda de sangue via vaginal no primeiro trimestre da gravidez ser a mais comum. Contudo, alertamos que nem toda a redução ou perda de sintomas, nem as perdas de sangue via vaginal nesta fase, terminam em aborto, mas na dúvida seja avaliada.
Atitude clínica após perda gestacional
Ao ser avaliada e se se comprovar que a gravidez não é evolutiva, pode ser-lhe dada a possibilidade de ter uma atitude expectante (evita intervenções e aguarda pela imprevisibilidade da perda de forma natural), medicamentosa (quando as condições uterinas, cervicais ou vaginais não permitem a aspiração do produto de conceção ou se preferir um prazo mais previsível para concluir o aborto espontâneo) e, ainda cirúrgica (se preferir a conclusão imediata e previsível da perda da gravidez, ou se estiver a fazer terapêutica anticoagulante, que aumenta o risco de hemorragia na adoção de uma atitude expectante ou medicamentosa).
Se optar pela primeira alternativa saiba que deverá ter atenção à quantidade de sangue perdida (uma referência fácil de que a hemorragia não é a “esperada” será se encher dois pensos maxi por hora, durante 2 horas consecutivas), e possivelmente acompanhado de cólicas abdominais intensas. Deverá ser avaliada em caso de perda hemática abundante, dor abdominal ou pélvica, secreção vaginal purulenta com cheiro fétido e, ainda, se apresentar sinais sistémicos de infeção, como febre, taquicardia (o coração a bater rápido demais) ou hipotensão (tensão muito baixa ao ponto de não se conseguir levantar).
No caso de o aborto ficar incompleto (ficar com restos ovulares in útero), poderá ser necessário seguir para uma intervenção cirúrgica (aspiração/curetagem uterina). Mas, independentemente da opção que tomar ser-lhe-á realizada uma avaliação ecográfica para confirmar se a expulsão do produto de concepção foi completa.
Imunoglobulina anti-D
Quando a mulher não sabe o seu grupo de sangue deverá ser realizada uma avaliação para sabê-lo, com o intuito de se identificar se o fator Rhesus do tipo-D está presente (Rh+) ou ausente (Rh-), que possa beneficiar da administração de imunoglobulina anti-D. Segundo a mencionada Circular Normativa da DGS, a medida profilática de administração de imunoglobulina anti-D após o aborto espontâneo/induzido não é prática comum a todas as instituições em Portugal. Por esse motivo considera-se fundamental dar-lhe a conhecer os seus benefícios.
No seu corpo, a partir da 6.ª semana de gestação de um feto Rh+, estará em circulação anticorpos anti-D, deixando-a sensibilizada. Se não for administrada imunoglobulina anti-D em caso de aborto, hemorragia de 2.º trimestre, técnicas invasivas de diagnóstico/terapêutica fetal, cirurgia/trauma abdominal ou morte fetal, a sensibilização irá provocar doença hemolítica perinatal que pode ser o motivo de voltar a abortar novamente no caso de estar grávida de um feto Rh+.
Orientações após perda gestacional
É conhecido o risco de ocorrência de um novo aborto após uma perda anterior (20%), subindo para 28% após dois abortos e para 43% após o 3.º. Por isso cuide de si e faça uma retrospetiva dos seus comportamentos e adote aqueles que lhe proporcionarem maior bem-estar e um ambiente salutar ao seu bebé.
Depois deste acontecimento, o tempo para retomar a sua vida de casal poderá não ser algo prioritário para si. Mas fisicamente a abstinência de relações sexuais vaginais recomendada é de 1 a 2 semanas após a garantia de que o aborto está completo, reduzindo assim o risco de infeção. Contudo, tal recomendação não é baseada em evidências mas pela experiência clínica da comunidade médica.
Se desejar iniciar contraceção hormonal pode fazê-lo após o término da perda precoce da gravidez. Se preferir colocar um dispositivo intrauterino poderá pôr imediatamente após o tratamento cirúrgico da perda precoce, desde que não haja indícios de aborto séptico (infetado).
Mas se pretender engravidar novamente, não há dados que apoiem a necessidade de esperar muito tempo para voltar a tentar. No entanto, é prática comum entre obstetras a recomendação de um intervalo de, pelo menos, 3 meses (a OMS recomenda um intervalo de 6 meses após a ocorrência de aborto espontâneo ou eletivo, até uma nova gravidez). Pequenos estudos observacionais não mostram nenhum benefício em adiar por muito tempo uma nova conceção após a perda precoce da gravidez, bem pelo contrário, ao revelar-se ser uma boa forma de dar continuidade, de forma positiva, à vida em casal.
Se desejar saber os seus direitos laborais relativamente à Licença de Interrupção da Gravidez, temos algo para lhe dizer aqui.
- Nené M, Marques R, Batista MA. Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica. Lidel, editor. Lousã 2016.
- DGS. Programa Nacional para a Vigilância da Gravidez de Baixo Risco. Lisboa 2015.
- DGS. Promoção da Saúde Mental na Gravidez e Primeira Infância – Manual de orientação para profissionais de saúde. 2005.
- Graça LMd. Medicina Materno Fetal Lidel, editor. Lisboa 2017.
- OMS. Abortamento seguro: orientação técnica e de políticas pa sistemas de saúde. 2ª edição ed 2013.
- Prager S, Micks E, Dalton VK. Pregnancy loss (miscarriage): Clinical presentations, diagnosis, and initial evaluation 2022 [Available from: https://www.uptodate.com/contents/pregnancy-loss-miscarriage-clinical-presentations-diagnosis-and-initial-evaluation?search=aborto%20espont%C3%A2neo&source=search_result&selectedTitle=1~150&usage_type=default&display_rank=1.
- ACOG. Early Pregnancy Loss 2018 [Available from: https://www.acog.org/clinical/clinical-guidance/practice-bulletin/articles/2018/11/early-pregnancy-loss.